Maria Vitória Gomes Cardoso
Na década de 1980, o renomado escritor e jornalista italiano Italo Calvino foi convidado para ocupar a cátedra de poesia Charles Eliot Norton na Universidade de Harvard. Essa cátedra consistia em um ciclo de seis conferências realizadas ao longo de um ano acadêmico, e a de Calvino seria entre 1985 e 1986. Para isso, ele planejou apresentar seis propostas para refletir sobre a literatura que despontaria no novo milênio. Infelizmente, o escritor morreu ainda em 1985, antes de concluir a sexta proposta. Contudo, as cinco propostas conhecidas que o autor elaborou são: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade e multiplicidade. A sexta, que ele não concluiu, seria a da consistência.
Para Calvino, a leveza da literatura é a capacidade da arte literária de oferecer uma resposta oposta ao peso e à opacidade do mundo. A rapidez refere-se ao ritmo e à lógica de uma narrativa, destacando o papel do narrador na articulação do tempo que molda o desenrolar da trama. A exatidão envolve a construção de uma obra bem definida, com imagens vívidas e memoráveis, além de uma linguagem extremamente precisa.
A visibilidade, por sua vez, está relacionada à habilidade do autor em criar mundos, personagens e situações que vão além da mera referência ao mundo empírico e imediato. A multiplicidade representa a capacidade de uma obra literária de se expandir em uma rede contínua de informações, abrangendo horizontes mais amplos e formando conexões entre fatos e pessoas. Por fim, a consistência – proposta que Calvino não pôde concluir devido à sua morte – refere-se à necessidade de um texto coeso e coerente, em que todos os elementos se entrelaçam de maneira harmônica, criando uma obra que ressoe em sua totalidade. Todos esses pressupostos estão presentes nas seis obras que Valentim analisa em seu livro, cada um representando uma das seis.
Inspirado nos princípios de Calvino, Jorge Vicente Valentim produziu a obra A prateleira hipotética: seis propostas da novíssima ficção portuguesa para o atual milênio (2000-2022), publicada recentemente pela Editora da Unicamp. Além dos seis pressupostos que orientam a análise, Valentim recorre à metáfora calviniana da “prateleira hipotética” para estruturar seu pensamento. Essa prateleira representa um espaço imaginário em que autor e leitor podem inserir aqueles livros considerados mais significativos. No entanto, essa prateleira não é fixa, mas sim dinâmica, sujeita a trocas e variações, refletindo a diversidade dos sistemas literários em diferentes épocas e contextos. Através dessa metáfora, o autor explora e investiga a ficção portuguesa contemporânea, produzida a partir dos anos 2000. Valentim seleciona seis romances que ocupam sua prateleira hipotética, analisando-os em diálogo com os seis pressupostos de Calvino.
Jorge Vicente Valentim é mestre e doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e atualmente é professor titular na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Autor de Corpo no outro corpo: homoerotismo na narrativa portuguesa contemporânea (2016), Valentim lançou agora A prateleira hipotética, uma obra dividida em seis capítulos, além de Nota do autor, Introdução e Conclusão. Cada capítulo é dedicado à análise de um romance português contemporâneo, articulado com um dos pressupostos de Italo Calvino.
No primeiro capítulo, Valentim examina Da meia-noite às seis, de Patrícia Reis, relacionando-o ao pressuposto da leveza. O segundo capítulo trata de Deus, pátria, família, de Hugo Gonçalves, vinculado à rapidez. No terceiro, ele analisa A nossa alegria chegou, de Alexandra Lucas Coelho, em diálogo com o pressuposto da exatidão. O quarto capítulo explora Pão de açúcar, de Afonso Reis Cabral, associando-o à visibilidade. No quinto, Valentim aborda Rua de Paris em dia de chuva, de Isabel Rio Novo, conectando-o à multiplicidade. Por fim, o sexto capítulo discute Felicidade, de João Tordo, refletindo sobre o conceito de consistência.
O autor destaca que muitas obras contemporâneas ainda são vistas com desconfiança por aqueles que preferem preservar o cânone tradicional, limitado às obras clássicas. Nesse contexto, o trabalho de Valentim ganha especial relevância, pois oferece espaço à novíssima literatura portuguesa e contribui para o futuro da crítica literária. Em vez de se concentrar apenas em textos já amplamente estudados, Valentim direciona seu olhar para obras recentes, que estão sendo escritas e lidas no presente, ampliando o escopo da análise crítica e abrindo caminhos para novas interpretações.
Seis romances, seis formas de criar ficção, seis caminhos muito diferentes entre si, enfim, seis obras que moldam diferentes cosmologias espaço temporais e, assim, demonstram e confirmam a potência da novíssima ficção portuguesa para lidar ora com cenários distópicos, ora com a matéria histórica, e para fixar reflexões sobre o seu tempo e o seu estar no mundo.
O autor também ressalta que, ao analisar as seis obras, é possível identificar semelhanças que vão além de sua contemporaneidade, especialmente no tratamento da matéria histórica. Algumas narrativas, como as de Patrícia Reis, Afonso Reis Cabral e João Tordo, são ambientadas no presente, enquanto outras, como as de Hugo Gonçalves e Isabel Rio Novo, exploram períodos históricos mais distantes, situando-se em 1940 e na segunda metade do século XIX, respectivamente. Embora essas obras sejam bastante distintas e heterogêneas em suas abordagens, todas convidam o leitor a refletir sobre o tempo presente, estimulando uma sensibilidade crítica e reflexiva.
A obra de Jorge Vicente Valentim também convida à reflexão e ele próprio descreve seu texto, citando Roland Barthes, como uma leitura de “ler levantando a cabeça”. É uma narrativa que provoca um fluxo constante de ideias e associações, que ao mesmo tempo prende o leitor e o incita a interromper a leitura para refletir e absorver melhor a leitura.
Para estudiosos de teoria e crítica literária ou para aqueles interessados na literatura portuguesa, trata-se de uma leitura imprescindível. No entanto, também é essencial para quem aprecia boa literatura contemporânea. A narrativa de Valentim é envolvente, e sua “prateleira hipotética” é riquíssima, repleta de excelentes referências da literatura portuguesa.
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Autor: Jorge Vicente Valentim
ISBN: 9788526816329
Edição: 1
Ano: 2024
Páginas: 560
Dimensões: 23 x 16 x 4 cm