Ana Alice Kohler
“Não havendo nada que perdure, é natural que a memória se esvaeça, porque ela não é uma planta aérea, precisa de chão.” É o que escreve Machado de Assis em Memórias póstumas de Brás Cubas. Essa preocupação com o destino dos feitos humanos diante da tirania do tempo não está apenas expressa em um dos maiores clássicos da língua portuguesa, mas é também o que movimenta grandes setores da história, da antropologia e, mais recentemente, dos estudos literários.
Pensando na memória como uma construção do presente, permeada por disputas políticas acerca da verdade histórica, nasceu, em 2008, a Coleção Espaços da Memória, da Editora da Unicamp. As obras reunidas na Coleção, portanto, “abrem a perspectiva de uma visada singular sobre a cultura como um diálogo e um embate entre diversos discursos mnemônicos e registros da linguagem”, respondendo, nesse sentido, a uma carência sentida pelo coordenador da Coleção, o professor Márcio Seligmann-Silva, de traduções e obras brasileiras que tratassem dos debates constantes acerca da memória e do testemunho. Por isso, reúnem-se títulos canônicos da área, mas também novas perspectivas acerca do tema, em uma abordagem interdisciplinar que transita entre a teoria literária, a história, as artes e os estudos pós-coloniais.
Márcio Seligmann-Silva é livre-docente de Teoria Literária no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp e pesquisa temas relacionados à literatura de testemunho, à decolonialidade e às narrativas de diáspora. Formado em História pela PUC-SP, tem mestrado em Literatura Alemã pela USP, doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade Livre de Berlim e pós-doutorados na Alemanha, no Brasil e em Yale. Além de crítico e teórico literário, o pesquisador também atua como ensaísta e curador de exposições.
Ao lado dele, também fazem parte da comissão editorial da Coleção: Cristina Meneguello, professora do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp; Isabel Capeloa Gil, reitora da Universidade Católica Portuguesa; Paulo de Sousa Aguiar de Medeiros, professor catedrático no Department of English & Comparative Literary Studies da Universidade de Warwick, no Reino Unido; e Roberto Vecchi, professor de Literatura Portuguesa e Brasileira da Universidade de Bolonha, na Itália. Por fim, o representante do Conselho Editorial que atua na Coleção é Carlos Raul Etulain, livre-docente da Faculdade de Ciências Aplicadas da Unicamp.
A seguir, conheça cada uma das obras que fazem parte dessa Coleção e suas contribuições para os estudos da memória no Brasil:
A arte da memória é considerada uma obra clássica dos estudos de memória. Nela, a historiadora da arte Frances A. Yates explora o desenvolvimento da chamada mnemotécnica, a arte da memória que nasceu na Grécia Antiga e que se transformou durante os séculos, sobrevivendo em nosso substrato cultural. Para Seligmann-Silva, “trata-se de um dado importante para nós hoje em dia, que assistimos a essa virada imagética. A tradição da arte da memória em si traz essa tradição da arte imagética de inscrição”. O livro, que foi publicado pela primeira vez no ano de 1966, operou uma transformação radical na forma como a teoria da memória é estudada.
Frances A. Yates foi uma historiadora francesa nascida no último ano do século XIX. Especialista nos estudos acerca do Renascimento, lecionou no Instituto de Warburg, da Universidade de Londres, e publicou diversos livros acerca do esoterismo e do misticismo na Renascença. Em A arte da memória, ela explora um processo importantíssimo da construção da história por meio do presente: a memorização.
Espaços da recordação, de Aleida Assmann, foi traduzido por uma equipe de jovens tradutores da Universidade Federal do Paraná, liderada pelo professor Paulo Soethe. A obra, escrita primeiramente como tese de livre-docência para a Faculdade de Filosofia da Universidade de Heidelberg, em 1992, é dividida em três partes e trata do processo de construção de identidades pelas culturas. A autora investiga, nesse sentido, “as diferentes tarefas da recordação cultural, quais os seus meios (como escrita, imagens, memoriais) no processo de transformação histórica e técnica, e as formas de cultivo do saber acumulado”. Assim, entram em jogo os diferentes meios pelos quais a memória é produzida e a forma como ela é articulada.
Aleida Assmann estudou inglês e egiptologia nas universidades de Heidelberg e Tübingen, tornando-se professora de Inglês e Estudos Literários em Konstanz, onde permaneceu de 1993 até 2014. Já lecionou em diversas universidades importantes, como Princeton, Yale e a Universidade de Viena. Autora de diversas publicações relevantes para a teoria da memória, suas principais áreas de pesquisa estão relacionadas à antropologia cultural e à história da memória alemã.
A luta da África por sua arte trata de um dos grandes dilemas da pós-colonialidade: a posse daquilo que foi saqueado pelo colonizador. Em uma “tentativa de escrever a história coerente de um malogro pós-colonial com base na profusão de material a respeito espalhado em inúmeros arquivos europeus e publicações africanas”, Bénédicte Savoy trata da construção da memória a partir da luta pela arte roubada, sua importância na autoafirmação dos povos e seu imbricamento no processo de construção das identidades pós-coloniais. A obra rememora e sistematiza, portanto, a jornada de reivindicação da própria história e cultura por parte dos povos africanos.
Bénédicte Savoy é historiadora e professora de História da Arte na Universidade Técnica de Berlim. Especialista na proveniência de obras de arte, Savoy publicou diversos estudos acerca da ética da posse de artefatos culturais no contexto de suas “translocações”. Em 2018, elaborou, ao lado do senegalês Felwine Sarr, o Rapport sur la restitution du patrimoine culturel africain, relatório comissionado pelo presidente francês Emmanuel Macron. Com esse trabalho de análise da herança cultural africana na França e de recomendação de formas de restituição, Savoy tornou-se um dos nomes mais relevantes da área.
Segundo Márcio Seligmann-Silva, A memória, a história, o esquecimento “é uma das obras mais complexas e interessantes sobre essa questão da história do mal”. Dividida em três partes bem delimitadas, Paul Ricoeur aborda a questão da representação do passado pelas seguintes vias: a fenomenologia da memória, a epistemologia da história e a hermenêutica da condição histórica. A partir dessas três chaves de análise, Ricoeur constrói uma das obras mais importantes para o estudo da memória na atualidade, principalmente no que diz respeito à ideia de “política da justa memória”, defendida pelo filósofo.
Paul Ricoeur foi um dos grandes nomes da filosofia pós Segunda Guerra Mundial, com contribuições para a fenomenologia, a hermenêutica e a teologia. Interessado, principalmente, nos conceitos de significado, subjetividade e na função heurística da ficção, seus escritos são fundamentais para o estudo da literatura e da história. Professor de grandes universidades, como a Sorbonne e Yale, escreveu dezenas de obras relevantes para as ciências humanas e sociais.
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A Coleção Espaços da Memória reúne obras importantíssimas para o estudo da construção do passado por meio das disputas do presente, de forma que serve como um arcabouço teórico essencial para quem busca aprofundar-se no assunto. Interessado pelo tema? Confira também os outros livros de História disponíveis no catálogo da Editora da Unicamp! Acesse nosso site e saiba mais.