Arte e anarquia: um alerta à “esplêndida superfluidade” moderna

Rafaela Neres Poiani

Em outubro de 2024, em Stuttgart, na Alemanha, a ópera moderna Sancta causou choque e mal-estar na plateia, devido ao fato de a apresentação incluir processos de perfuração (piercing) ao vivo, relações sexuais não simuladas e grandes quantidades de sangue falso e real. A direção de cena é da coreógrafa Florentina Holzinger, conhecida há anos por provocações no campo teatral, através de trabalhos que exibem corpos femininos de forma radical e reveladora, incorporando acrobacias dolorosas. A obra em que se baseia, Sancta Susanna, do compositor alemão Paul Hindemith (1895-1963), também gerou escândalo na estreia, em 1922. Ao retratar os últimos momentos da vida de uma freira conflituada, a ópera aborda a relação entre celibato e luxúria no cristianismo, integrando elementos estilísticos do Expressionismo e do Romantismo Gótico.

Pensando na relação do homem moderno com as produções artísticas, o alemão Edgar Wind, em sua primeira radioconferência de 1960 das Reith Lectures intitulada Art and Anarchy, pontuou: “se julgarmos a situação de modo justo, não é a quantidade de pessoas que olham para a arte que é alarmante, mas sim a quantidade de obras que olham, e o rebaixamento da arte a um espetáculo passageiro”; ora, ainda que ela cause certo choque, segundo o escritor francês André Gidé, um “ato gratuito”, esse é um efeito que tem pouca chance de durar, dado que “o choque desaparece quando se torna corriqueiro, e o mecanismo pelo qual foi inicialmente gerado recebe seu lugar na longa galeria dos mecanismos modernos, onde, adequadamente classificado e distintamente rotulado, atrai e satisfaz o peregrino indiferente (ou apenas desperta sua curiosidade)”, conforme alerta Wind. 

É esse o ponto de partida para as reflexões de Edgar Wind (1900-1971) trazidas no livro Arte e anarquia: a reação superficial à arte na modernidade. O livro é fruto das radioconferências da Reith Lectures, uma prestigiosa série anual de radioconferências acadêmicas da British Broadcasting Corporation (BBC), iniciada em 1949. As radioconferências dadas por Wind foram publicadas como livro pela primeira vez em 1963, ganharam uma segunda edição em 1969 e uma terceira em 1985, quando o autor já havia falecido. Art and Anarchy foi traduzido para várias línguas, entre elas o japonês, o espanhol e o francês, e, agora, mais de 50 anos depois de sua publicação, ganha sua primeira edição em português pela Editora da Unicamp. 

A nova edição reúne as seis conferências de cerca de 30 minutos de duração, ocorridas de 13 de novembro a 18 de dezembro de 1960, e faz parte da Coleção Palavra da Arte da Editora da Unicamp, que publica fontes primárias e estudos em história da arte relacionados à tradição clássica. Arte e anarquia foi organizado por Ianick Takaes e Patrícia Dalcanale Meneses. Ianick Takaes tem duplo mestrado (M.A e M.Phil) em História da Arte pela Universidade Columbia (EUA) e é autor de diversos artigos sobre Edgar Wind e historiografia da arte em revistas nacionais e internacionais. Patrícia Dalcanale Meneses realizou doutorado em História das Artes Visuais pela Universidade de Pisa (Itália) e atualmente é professora do Departamento de História (IFCH-Unicamp). Edgar Wind nasceu em Berlim e foi um historiador da arte renascimental por exercício, vinculado ao pensamento warburguiano, filósofo pós-kantiano de formação e crítico ferrenho do formalismo puro e da l’art pour l’art (“arte pela arte”).

A obra Arte e anarquia representa a faceta mais contemporânea do pensamento de Wind, atuando como uma espécie de testamento intelectual do autor, e é composta por Prefácio à edição brasileira; Introdução à edição brasileira; Prefácio do autor à primeira edição; Introdução à terceira edição; e mais seis partes (referentes às conferências), “Arte e anarquia”, “Participação estética”, “Crítica da connoisseurship”, “O temor do conhecimento”, “A mecanização da arte”, “Arte e a vontade”; e Índice remissivo. Adicionalmente, há uma lista com 16 ilustrações que se relacionam às obras artísticas e aos pensadores aos quais Wind recorre em seus argumentos, entre elas, Busto de Platão, Retrato de Hegel, Retrato de Baudelaire e A Escola de Atenas

Apesar de ter sido escassa sua produção acadêmica, Wind era um orador brilhante no Reino Unido; logo, em 19 de novembro de 1959, Anna Kallin, influente produtora da BBC, escreveu a seu superior, John Green, sugerindo Edgar Wind para as Reith Lectures de 1960. As Reith Lectures eram o programa de maior prestígio da BBC e traziam pessoas da elite britânica acadêmica para discutir assuntos como o autoritarismo estatal, o impacto social da teoria quântica e a magnitude do colonialismo britânico. Segundo a Introdução à edição brasileira: 

Cabia ao intelectual responsável pelas Reith Lectures de cada ano abordar um assunto de interesse da sociedade britânica do pós-guerra de forma acessível, porém penetrante; ou seja, deveria oferecer um discurso intelectual altaneiro em resposta a uma nova era global marcada pelo refluxo colonialista, pela emergência de superpotências antagônicas e pela ameaça nuclear. 

Em sua primeira conferência, intitulada por ele próprio de Art and Anarchy, o autor recorre a renomados pensadores para embasar suas reflexões e críticas, como Platão, Edmund Burke, Hegel e David Hume (uma de suas referências intelectuais constantes). Wind também chama a atenção para o fato de a ampla difusão da arte trazer consigo uma perda de densidade, visto que ficamos imunes a ela, imunes à sua capacidade de afetar nossa existência, tornando-se, assim, uma ocupação marginal moderna. Contudo, pondera o autor, “a arte não perde sua qualidade de arte ao se marginalizar; […] torna-se uma esplêndida superfluidade”. 

Arte e anarquia é um discurso que, embora panfletário e fruto de uma conjuntura, indica a audácia de um intelectual em romper com a neutralidade acadêmica e advertir a esfera pública em linguagem acessível quanto aos perigos iminentes. O acadêmico também definia seu livro como um “vieux jeu”, um “jogo antiquado”, ou seja, a reformulação de argumentos quase axiomáticos já avançados por uns tantos luminares do passado, como Platão, Goethe e Baudelaire. 

Edgar Wind presenteia seus leitores com um livro engenhoso e erudito, ao distinguir entre assuntos de grande ambiguidade e complexidade, sublinhando a natureza e as dinâmicas fundamentais da ficção na arte. Nessa nova edição pela Editora da Unicamp, estudiosos das áreas de Artes e Filosofia podem se beneficiar das ideias de Wind de forma acessível, posto que a obra conta com Prefácios, Introduções e notas que auxiliam na compreensão do trabalho; especialmente por se tratar de uma referência em português sobre um pensador que é pouco conhecido e pouco estudado no Brasil.

Para saber mais sobre o livro, visite nosso site

Arte e anarquia

Organização: Ianick Takaes, Patrícia Dalcanale Meneses

ISBN: 9788526816725

Edição: 1ª

Ano: 2024

Páginas: 280

Dimensões: 14 x 21 cm

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