
Nessa direção, não poderia ter vindo em mais boa hora a biografia publicada em inglês em 2012 e traduzida para o francês em 2021. A obra ganha agora sua versão em português, em uma tradução cuidadosa e precisa de Bruno Turra, ele mesmo um estudioso de Saussure com uma importante tese sobre a escrita em seu pensamento. Cotejando a versão em inglês com a versão francesa e depurando o texto da versão original de alguns erros, segundo afirmou o próprio Joseph – que enfatiza devermos considerar o texto em português como a “versão definitiva” –, a publicação demonstra o ânimo singular das pesquisas sobre Saussure em terras brasileiras, onde talvez sejam aquelas de maior vivacidade e originalidade no campo das pesquisas sobre o pensamento saussuriano.
Muito cedo, com apenas 21 anos, Saussure se notabiliza pelo Mémoire sur le Système Primitif des Voyelles dans les Langues Indo-Européennes, obra na qual surgem elementos que serão atribuídos apenas ao Saussure “maduro”, como a ideia de que tudo na língua opera segundo um sistema e valores negativos e diferenciais. De fato, o modo como Saussure conceitua o nascente conceito de “fonema” nesse momento já oferece as bases para o que será conhecido como estruturalismo, pois se trata de uma unidade dentro de um sistema socialmente partilhado. Esse Saussure acessível apenas a um público muito especializado agora se torna domínio comum graças à biografia ora lançada, que explora justamente o fato de que muito do que viria a se disseminar pelo Curso de Linguística Geral (CLG) já estava presente na obra do Saussure “jovem”. O próprio CLG chega bem tarde à biografia, mas isso tem razão de ser na medida em que os cursos ministrados por Saussure no período de 1907 a 1911 também chegaram bem tarde a sua vida. Não só por essa razão cronológica, mas também porque a biografia se demora muito justificadamente em expor a construção do pensamento de Saussure desde seus primeiros escritos, mobilizando formas de pensar a que o CLG simplesmente dará a forma definitiva.

Mesmo o CLG resulta de um acaso fortuito: tendo se aposentado o professor da cadeira de linguística geral da Universidade de Genebra (Suíça), em vez de contratar um novo professor, o Departamento de Instrução Pública decide atribuir a responsabilidade por esse curso ao docente de sânscrito e filologia comparada, isto é, a Saussure. Com 49 anos, Saussure fica encarregado de ministrar um curso mais generalista e para um público menos versado que seus alunos usuais de gótico, alto-alemão, sânscrito, lituano, grego etc. Na verdade, a disciplina de linguística geral era obrigatória e fazia parte do currículo de diversas formações, agregando alunos que nem sempre tinham um interesse específico pela questão das línguas. Além disso, tratava-se de um tema pelo qual Saussure não demonstrava exatamente muito entusiasmo, mesmo porque considerava difícil articular algo de definitivo a seu respeito.
Como já fizeram Françoise Gadet e Michel Pêcheux em A Língua Inatingível, mas também Émile Benveniste, e como Jacques Lacan mais de uma vez assinalou, o biógrafo de Saussure sustenta não haver dois Saussures, um da ordem, da simetria e da razão e outro da desordem, do acidental e do primitivo. Não há Ferdinand deux Saussures (como um certo pós-estruturalismo tentou fixar), mas sim um interesse vivo por aquilo que as línguas têm de paradoxal e de singular dentre os demais sistemas. Para captá-lo, Saussure transitou por anagramas, lendas germânicas, o problema da acentuação em lituano, a questão do tempo, a questão do espaço. É uma mesma pergunta obstinada que encontramos nessa diluição por diferentes temas: onde está o próprio da língua?
A busca por esse “próprio” revela um Saussure soterrado pelo peso de um bisavô cuja celebridade científica ele queria tocar (visada na qual considerava ter fracassado) e interessado por diferentes domínios: a relação entre língua e fenômenos espíritas, a questão da língua dos marcianos, a ideia de que a linguística se assemelha a um sistema de geometria, a questão das lendas germânicas, o mistério dos anagramas… Todas essas incursões nos mostram um Saussure que busca desenhar os fundamentos da linguística e que não se contenta com as formulações que circulam em seu tempo e sobre as quais não teria tempo de assinalar o que precisaria ser corrigido. Um homem que descobre sua vocação muito jovem, torna-se célebre muito jovem, escreve textos fundamentais muito jovem… E que tinha a sensação de não ter mais tempo… Aliás, não era esse um dos problemas fundamentais que apontava com relação ao estudo das línguas – a necessidade de levar em conta o fator “tempo” –, uma questão que coloca a linguística no campo das ciências históricas?
Lauro Baldini é professor do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp
O Projeto Resenha é fruto de uma parceria entre a Editora da Unicamp e a Associação de Docentes da Unicamp (Adunicamp).
Para ler a resenha no site do Jornal da Unicamp, clique aqui.
Saussure
Autor: John E. Joseph
Tradução: Bruno Turra
Ano: 2024
Páginas: 904