Nas águas da história: A luta pelo trabalho digno em Os lugares da marinhagem

Ana Alice Kohler

“Durante anos e anos, dia a dia, o marinheiro erguia num sonho contínuo a sua nova terra natal… Todos os dias punha uma pedra de sonho nesse edifício impossível…” Esse trecho da obra teatral O marinheiro (1915), de Fernando Pessoa, apresenta uma percepção típica acerca da posição social ocupada pelo trabalhador da navegação, a saber, seu apartamento das relações coletivas estabelecidas em terra e seu desejo pela construção de um lugar para si. Apesar desse suposto isolamento, entretanto, as dinâmicas raciais e de classe não apenas atingem esses trabalhadores, mas ganham novos contornos quando adentram as embarcações. É tentando lidar com a especificidade desse grupo heterogêneo, a marinhagem, que Caio Giulliano Paião estruturou a sua pesquisa historiográfica em Os lugares da marinhagem: Racialização e associativismo em Manaus, 1853-1919

Caio Giulliano Paião é doutor em História Social pela Unicamp e mestre pela Universidade Federal do Amazonas, instituição na qual se graduou em História. Atualmente, é pós-doutorando na Universidade Federal de São Paulo e atua como professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em História da Ufam e como membro do Laboratório de Estudos sobre História Política e do Trabalho na Amazônia (Labuhta/Ufam). Suas principais áreas de pesquisa são: história marítima e portuária, imprensa, pós-Abolição, movimento operário e associativismo, biografias, migrações e dinâmicas transnacionais.

Em Os lugares da marinhagem: Racialização e associativismo em Manaus, 1853-1919, Paião trata dos marítimos dos séculos XIX e XX como trabalhadores pertencentes a diferentes grupos raciais e de classe, inseridos em uma estrutura que criou espaços específicos para cada sujeito. O livro é dividido em três partes que somam oito capítulos precedidos por uma Introdução e seguidos de uma Conclusão. Além disso, a obra possui diversos paratextos importantes, como o Prefácio, escrito por Fernando Teixeira da Silva, e a Apresentação, de autoria de Luís Balkar Sá Peixoto Pinheiro, que são, respectivamente, orientador e membro da banca avaliadora da tese de doutorado que originou o livro. Ambos os textos elucidam as categorias abordadas por Caio Paião na obra, seus pontos de partida e pressupostos.

A Introdução, intitulada “Definindo lugares”, parte da análise histórica proposta por Lélia Gonzalez em relação às estruturas de dominação que estão em jogo na produção econômica brasileira. Assim, o autor mobiliza o conceito de “lugar” com o qual vai trabalhar durante todo o livro e esclarece outros termos empregados na obra, como “marinhagem” (expressão utilizada pela luta trabalhista dos marítimos) e “racialização”, que designa o “processo histórico e social por meio do qual as categorias raciais são criadas, experimentadas e transformadas”. Além disso, a Introdução situa o estudo de Caio Paião na era da ascensão dos barcos a vapor, no limiar entre o Império e a República e, ainda, na transição social-econômica proporcionada pela Abolição. 

A primeira parte do livro, denominada “O lugar no espaço”, trata justamente da relação estabelecida entre a geografia amazonense, em especial em relação ao Porto de Manaus, a disposição espacial das embarcações e o processo de racialização das funções da marinhagem. Nesse sentido, o primeiro capítulo dessa seção, “Pelo rio-mar”, descreve a formação de um percurso de navegação no rio Amazonas, que ganhou contornos exploratórios com a chegada dos barcos a vapor. Até então, segundo o autor, a navegação fluvial na região acontecia por intermédio dos locais, em sua maioria homens e mulheres de comunidades indígenas, ribeirinhas e de mocambos, que detinham o conhecimento necessário para efetuar a travessia em segurança.

Com o passar das décadas, entretanto, não apenas a demografia da população empregada na navegação transformou-se, mas também surgiram novas formas de subalternidade relacionadas às hierarquias do setor. A embarcação a vapor, nesse sentido, dinamizou e intensificou o comércio fluvial da região, que passou a receber, a partir da segunda metade do século XIX, um intenso fluxo de profissionais especializados na navegação. Nesse contexto, Caio Paião aborda, no segundo capítulo, “No Porto de Manaus”, as interações entre as companhias de navegação, o Estado e os trabalhadores envolvidos na marinhagem. Dessa forma, o autor descreve os acontecimentos e as repercussões da Greve dos Catraieiros (1984), o processo de abolição da escravidão na província do Amazonas e a modernização portuária, que abriu a região para o capitalismo internacional. Além disso, são destacados elementos sociais-demográficos da região, como a composição étnico-racial dos trabalhadores e a exploração da região por companhias de comércio estrangeiras, em sua maioria inglesas.

Por fim, o último capítulo da primeira parte do livro, “O navio-arquipélago”, trata da forma como as relações de trabalho eram estruturadas dentro das embarcações, com destaque para a reestruturação das posições laborais a partir da implantação definitiva da navegação a vapor. Assim, o autor separa a marinhagem por função desempenhada e localização dentro da lógica de funcionamento do navio. Caio Paião divide esses trabalhadores, portanto, em: 

Comandantes, práticos e pilotos no ápice da pirâmide naval; marinheiros, moços e criados no convés; maquinistas nos motores, bombas e equipamentos de naturezas diversas; foguistas e carvoeiros nas caldeiras formavam as ilhas de um intrincado arquipélago de profissões. As relações entre esses grupos eram mediadas por complexos ordenamentos legais, por preconceitos morais e raciais, pelas expectativas de mando e subalternidade e por enfrentamentos cotidianos.

A segunda parte de Os lugares da marinhagem, “O lugar de trabalho”, trata do cotidiano da vida dos operários a bordo dos vapores, com especial destaque para a temporização do trabalho e os métodos de subalternização dos “marujos”. O quarto capítulo do livro, nesse sentido, descreve 24 horas de funcionamento de uma embarcação, desde o embarque até o anoitecer, as péssimas condições de trabalho e os conflitos gerados pela hierarquização forçada. Assim, por meio de exemplos de casos reais documentados, o historiador explora as funções exercidas pela marinhagem e as possíveis distrações disponíveis em meio a um calor intenso e úmido ao longo do rio Amazonas e seus afluentes.

O quinto capítulo da obra, “Os limites da tolerância”, dá continuidade ao anterior, na medida em que demonstra como o cotidiano a bordo influenciava o associativismo em terra. São descritas, também, as formas de punição empregadas pelos oficiais, sendo a principal delas o castigo físico por meio de chibatadas. Nesse sentido, não apenas a organização das funções a bordo era pautada por raça, mas também a imposição de poder reproduzia costumes escravagistas. A criação da União dos Marinheiros e Moços do Amazonas, portanto, ofereceu um sentimento de proteção e justiça aos que sofriam maus-tratos e que podiam, agora, denunciar seus superiores. 

A terceira parte do livro, que reúne os últimos capítulos da obra, trata justamente do processo de criação do associativismo da marinhagem, como exposto no título, “O lugar de luta”. O sexto capítulo descreve, então, o surgimento das primeiras associações, nesse momento lideradas por oficiais e trabalhadores de alto cargo. São apresentadas, ainda, outras formas de sociabilidade desenvolvidas na época, como os “clubes de oficiais”, os programas de assistencialismo e jornais como o Gazeta Marítima. Todos esses processos, somados à disputa entre a Marinha de Guerra e a Marinha Mercante e a discórdia étnico-racial, serviram para desarticular os trabalhadores subalternos, que não possuíam representação legítima ou poder político. Foi reivindicando sua posição como trabalhadores que a marinhagem começou a associar-se e a lutar por melhores condições, com a criação de instituições como a Sociedade Beneficente União dos Foguistas, que se reconhecia como uma associação “proletária”, e não “marítima”. 

Os detalhes dos acontecimentos que envolvem essa luta são dados no próximo capítulo, “Em busca de unidade associativa”, em que Paião elenca e explica os principais fatos históricos que definiriam o associativismo da marinhagem manauense da época. A eleição do piloto Cardoso de Faria, as consequências da valorização da borracha, o bombardeio de Manaus e a instituição da Liga Naval da Amazônia são alguns dos episódios narrados pelo autor para contar a história desses trabalhadores. Já o oitavo e último capítulo, “Dos motins às greves”, expõe as formas de sublevação que faziam parte da luta para “canalizar energias de revolta em movimentos organizados e dotados de reflexões sobre as condições de vida e trabalho, da tirania e do racismo dos superiores, dos baixos salários e dos déficits de equipagem, durante a crise náutica ocasionada pela queda da borracha e agravada com a Grande Guerra”. 

Por fim, a Conclusão, “O lugar alcançado”, parte do encontro, realizado em 1930, entre o ministro do Trabalho, Lindolfo Collor, e uma comissão das classes marítimas, e recorda todo o caminho percorrido por esses trabalhadores em busca de reconhecimento e regularização. A mensagem principal de Os lugares da marinhagem, portanto, é de esperança nas conquistas vindas por meio da luta: 

Mas aprendi com os marítimos que a linha-d’água não se limita pelos olhos, que na sua aparente infinitude é possível projetar seus próprios horizontes e, mais adiante ou mais perto do que imaginamos, há lugares para a esperança. Que esses lugares da marinhagem para mundos melhores irradiem destas páginas e entusiasmem leitoras e leitores, da mesma forma como me ocorreu enquanto os descobria.

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Os lugares da marinhagem: Racialização e associativismo em Manaus, 1853-1919

Autor: Caio Giulliano Paião

ISBN: 9788526816404

Edição: 1ª 

Ano: 2024

Páginas: 440

Dimensões: 16 x 23 cm

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