Um Atlântico liberal: ideias, organizações e estratégias em disputa na América Latina

Ana Alice Kohler

Em Um Atlântico liberal: think tanks, Vargas Llosa e a ofensiva de direita na América Latina, María Julia Giménez embarca em uma difícil missão: tentar compreender as forças em disputa na arena do que é conhecido por muitos como o “capitalismo tardio”. A obra, que partiu da sua tese de doutorado, trata da formação de redes de concentração e disseminação de ideais liberais e busca compreender como são articuladas as estratégias de combate ao comunismo, ao populismo e ao autoritarismo que essas organizações enxergam como ameaças reais e atuais. Assim, a autora investiga o funcionamento estratégico desses propagadores de ideologias, sejam eles figuras públicas ou instituições, a partir de três formas de análise: a reconstrução histórica da organização dos intelectuais neoliberais em torno dos think tanks, a identificação das mobilizações promovidas pela Fundación Internacional para la Libertad e, por fim, a investigação das conexões feitas e dos efeitos atingidos por esses atores no debate político internacional.

María Julia Giménez, autora do livro, é bacharel e licenciada em História pela Universidad Nacional del Sur (UNS) e mestre pela Universidad Nacional de La Plata (UNLP) e pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Apresentou, em 2021, na Unicamp, sua tese de doutorado, com a orientação do professor Reginaldo C. de Moraes e do professor André Kaysel Velasco e Cruz. Atua em diversos âmbitos como comunicadora, trabalhando com Direitos Humanos, Memória, Verdade e Justiça, Questão Agrária e Direito à Comunicação.

Um Atlântico liberal é dividido em três partes que exploram o conteúdo da pesquisa e da argumentação empreendida por Giménez. Antes de entrar em contato direto com as questões trabalhadas, entretanto, a autora traz um texto com Agradecimentos e uma Introdução que detalham o processo de construção da obra e expõem seus objetivos e métodos. Logo na porção introdutória, a autora destaca qual é o contexto e quais são as motivações por trás da escrita do livro, fornecendo um exemplo da atuação da FIL, Fundación Internacional para la Libertad: a convocação do manifesto “Que a pandemia não seja um pretexto para o autoritarismo”, assinado por diversas figuras proeminentes e que alertava, sem apresentar dados empíricos, para “medidas que restringem indefinidamente liberdades e direitos básicos” tomadas durante a crise sanitária envolvendo a covid-19. Assim, a autora demonstra quais são os princípios norteadores da FIL, uma instituição que luta pela manutenção da democracia liberal e do capitalismo de mercado e que foi fundada por Mario Vargas Llosa, grande nome da literatura e da direita peruanas.

Além disso, a Introdução ainda descreve como o papel dos think tanks, instituições que pensam políticas públicas, é relevante na propagação do neoliberalismo pelo globo. Segundo a autora, think tanks são

um tipo de organização política orientada à busca de influência e consensos a partir da produção e da circulação de um tipo de saber especializado dentro e fora do sistema político propriamente dito (sejam estes policy makers, legisladores, jornalistas, empresários, acionistas, eleitores, chefes de família ou consumidores, dependendo das circunstâncias concretas e de seus objetivos institucionais).

Assim, a autora vai desdobrar, na construção de sua argumentação, os efeitos e o funcionamento dessas duas formas de organização inscritas na lógica liberal, seguindo o princípio de “não ridicularizar as direitas atuantes na América Latina e de entender as ideias e os significados mobilizados como uma ação coletiva, séria, coordenada e articulada em redes nacionais e internacionais para incidir nos processos políticos latino-americanos”. Giménez ainda utiliza reflexões de Antonio Gramsci sobre tradução e tradutibilidade na análise da transposição de paradigmas como o “perigo vermelho” e o medo da tríade populismo-comunismo-autoritarismo não apenas de forma temporal, da Guerra Fria para o presente, mas também de forma geográfica, em relação à aliança liberal formada por países do Atlântico.

A primeira parte do livro, intitulada “Carta náutica”, busca estabelecer o debate que se dará durante toda a obra, a saber, a interação entre as direitas latino-americanas, os think tanks, as “redes internacionalizadas de defesa do pensamento liberal” e suas manobras na disputa ideológica atual. Assim, em “(Novas) Direitas e (velhas) ameaças na América Latina”, trecho inicial dessa parte, a autora descreve como a direita latina, associada, até a primeira metade do século XX, com uma visão mais totalitarista e conservadora de Estado, viu-se, na virada do milênio, aliada a setores neoliberais e empresariais. Segundo Giménez, a Fundación Internacional para la Libertad é uma nítida expressão desse processo, que, por várias vias, dentre elas o sentimento anticomunista, conseguiu unir o conservadorismo católico com a defesa das ideias de livre mercado e da democracia representativa.

Os think tanks são destacados, ainda na primeira parte do livro, como órgãos que, em defesa do neoliberalismo, participam da “corrida pelas construções discursivas”. Assim, após expor diferentes visões acerca do funcionamento, da definição e dos princípios desses órgãos, a autora trata da associação entre essas instituições e esses momentos-chave na história política da América Latina. Os anos 1980, nesse sentido, são um importante marco desse processo, pelas transições democráticas e reformas estruturais que propiciaram o surgimento de novos atores sociais. Já o segundo boom de think tanks latinos deu-se nos primeiros anos do século XXI, como resposta à crise do neoliberalismo vivida na década de 1990.

Na segunda parte do livro, Giménez expõe como essas redes de conhecimento agiram na contraofensiva da direita a partir dos anos 2010. Dessa forma, em “Atravessar o Atlântico e caçar Drácula”, a autora remonta a história do neoliberalismo em escala global e regional, dando especial destaque para figuras como Friedrich Hayek, economista liberal que estabeleceu conexões e influenciou o pensamento de intelectuais da América Latina durante o século XX. Assim, a trajetória de importantes instituições, como a Mont Pèlerin Society, é remontada de forma a explicitar como elas nasceram e se integraram nas disputas políticas. Nesse sentido, Giménez destaca o poder de influência de correntes ideológicas estadunidenses e europeias, principalmente as britânicas e espanholas, na criação de uma comunidade de intelectuais pró-mercado na América Latina.

O leitor ainda encontra, nessa parte, detalhes de como a Fundación Internacional para la Libertad está diretamente ligada ao fomento dos think tanks pelos países de língua espanhola e do seu funcionamento como articuladora transatlântica de ideias neoliberais. Assim, o leitor pode compreender como “foi possível criar uma coalizão atlântica de caráter defensivo e ofensivo em tempos de crise e de contestação ao modelo neoliberal na América Latina”. Para Giménez, isso se deu da seguinte forma: pela visibilidade alcançada na esfera pública e privada a partir de eventos, seminários, workshops e outras divulgações, com a captação de recursos e pelos programas de pesquisa desenvolvidos.

Nesse sentido, as ideias propagadas giravam em torno de uma visão do Atlântico como polo de intercâmbio de ideias, empresas, capitais, tecnologias e ideologias entre a Europa e as Américas. Essa configuração geopolítica tornou-se central, segundo a autora, durante a chamada “maré rosa”, primeiros anos do século XXI em que os governos latinos se encontravam mais à esquerda. Para Giménez, o que se sucedeu pode ser encarado como um “iberismo sob a influência dos EUA”, pois, na sua visão, a formação do “Atlântico liberal” dependeu da interação de todas essas forças.

A última parte de Um Atlântico liberal: think tanks, Vargas Llosa e a ofensiva de direita na América Latina trata das ações concretas empreendidas pela FIL na sua construção discursiva. Assim, em “A Fundación Internacional para la Libertad em alto-mar”, Giménez demonstra como a doutrina do liberalismo permite a congregação de diversos interesses e, ao mesmo tempo, torna-se “uma língua e uma cultura universais”, personificadas na figura de Vargas Llosa, fundador da FIL. Os principais eventos discutidos pela autora, na tentativa de identificar as estratégias da fundação, são o Seminário Internacional em Bogotá (2003), o III Foro Atlântico (2006), o V Foro Atlântico (2008), o III Foro em Lima (2014) e o Seminário Internacional Mario Vargas Llosa (2016). 

Para a autora, foram essas as ocasiões em que a FIL concentrou seus esforços e estabeleceu seu discurso, baseado nas oposições liberalismo-populismo, civilização-barbárie, individualismo-coletivismo e modernidade-arcaísmo. Esses dualismos são fundados na concepção de populismo como um mecanismo de dominação centrado na coletividade e na presença do Estado como responsável pelo bem-estar social, o que contradiz alguns pilares do capitalismo de mercado, como a importância absoluta do indivíduo e da propriedade. Segundo Giménez, durante esses eventos, somaram-se às ideias já estabelecidas pela FIL a ameaça do terrorismo fundamentalista, a ideia de progresso vinculada à globalização e a responsabilidade internacional de intervir em países que fogem da lógica neoliberal. De forma geral, o leitor entra em contato, ao longo dos últimos capítulos, com “momentos de encenação da coalizão discursiva, da mobilização de significantes e da disputa de imaginários durante o período estudado”, essenciais na compreensão das dinâmicas políticas atuais.

Por fim, em “Comentários finais – Navegar é preciso”, Giménez faz um apanhado das temáticas discutidas ao longo do livro e relaciona-as com os últimos eventos da política internacional, como o mandato de Jair Bolsonaro no Brasil e a eleição de Javier Milei na Argentina. Como proposta final, a autora lança uma pergunta ao leitor que reflete as intenções por detrás da pesquisa e seus possíveis desdobramentos práticos:

Entendendo que a batalha das ideias é o desafio das classes subalternas para assumir o controle do relato de sua realidade, que para isso é tarefa central desmontar e propor novos esquemas de compreensão da realidade, recuperar e transformar os sentidos em torno da democracia, do povo, da liberdade, da política, dos direitos humanos e da justiça (para mencionar algumas ideias-força centrais na disputa política contemporânea), é válido nos perguntar: como desmontar esse espetáculo sem entrar nele, sem alimentá-lo com público, malabaristas e iluminadores?

Para saber mais sobre o livro, acesse nosso site!

Um Atlântico liberal: think tanks, Vargas Llosa e a ofensiva de direita na América Latina

Autor: María Julia Giménez

ISBN: 9788526816589

Edição: 1ª 

Ano: 2024

Páginas: 320

Dimensões: 14 x 21 cm

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