Por Ana Alice Kohler
É certo dizer que, com a pandemia do coronavírus (SARS-CoV-2) e da doença correspondente, a covid-19, a importância da saúde pública pareceu atingir novas proporções. Nesse contexto, entrou em evidência o acesso universal à saúde de qualidade, de forma igualitária, democrática e total, fundamental no enfrentamento da crise sanitária. No Brasil, isso só foi possível por meio do Sistema Único de Saúde. O novo livro da Editora da Unicamp, A epopeia do SUS: uma conquista civilizatória, trata justamente do processo de criação do sistema de saúde público brasileiro, o único no mundo que atende gratuitamente mais de 200 milhões de pessoas. A obra resgata, nesse sentido, a história de diferentes personagens essenciais na implementação do SUS, que se deu por meio da Constituição de 1988.
A obra foi escrita por Carmino Antonio de Souza, formado em medicina pela Unicamp, onde é professor titular de hematologia e hemoterapia; Lenir Santos, formada em direito pela Uerj e professora convidada do Departamento de Saúde Coletiva da Unicamp; José Enio Servilha Duarte, médico pela USP; e José Pedro Soares Martins, jornalista formado pela Unimep com passagem pelos jornais Correio Popular, Terramérica e O Diário.
O livro A epopeia do SUS é composto de 12 capítulos, além de textos introdutórios e adicionais, como o “Linha do tempo do SUS”, que finaliza a obra organizando os acontecimentos relatados de forma cronológica. O Prefácio, intitulado “Resgate aos pioneiros do Sistema Único de Saúde (SUS) – Uma política pública de sucesso”, de autoria de Carmino Antonio de Souza, trata do grande objetivo da obra: dar destaque àqueles que tornaram realidade o que parece ser fruto de uma utopia. Assim, o livro pretende contar uma história pouco conhecida, que parte do surgimento do sanitarismo no Brasil, passando pela inclusão do SUS na Constituição Federal de 1988 e que chega aos desafios enfrentados após a pandemia.
A Introdução, “Uma conquista civilizatória”, compara duas situações parecidas, separadas por quase 95 anos: a ida de Oswaldo Cruz para Santos, em 1899, e a viagem de Carmino de Souza, até então secretário da Saúde do estado de São Paulo, em 1993, também para a Baixada Santista. O primeiro tinha a missão de identificar casos de peste bubônica, enquanto o último, de averiguar o surto de cólera que assolava a região. Além de todas as transformações ocorridas durante esse período, o que diferenciou uma viagem da outra foi o surgimento do “mais abrangente e democrático conjunto público de recursos para atendimento gratuito à saúde de todo o planeta”, o SUS. Ainda, na Introdução, há um pequeno resumo do conteúdo da obra e, principalmente, um destaque do papel das figuras que tornaram o Sistema Único de Saúde uma possibilidade:
Escrito com base no depoimento de muitos personagens diretamente envolvidos e em vasta pesquisa documental, este livro busca documentar a trajetória dessa grande epopeia civilizatória chamada SUS. É o Brasil, que ainda sofre as marcas de um dos maiores crimes cometidos na história da humanidade – o tráfico e a exploração da escravidão –, dando um exemplo de respeito integral à cidadania, como pensavam os ideólogos da Revolução Francesa ou os artífices da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10 dezembro de 1948.
Nos primeiros capítulos, aborda-se o surgimento das instituições de saúde no Brasil, que se deu, já no período colonial, através das “santas casas”. Essas localidades tinham caráter caritativo e eram mantidas pela Igreja católica, seguindo uma ideia de saúde pública vista como filantropia, e não como direito universal. Além disso, destacam-se as condições de ocupação do território brasileiro e como elas influenciaram no aparecimento de epidemias por todo o país, através da devastação dos biomas litorâneos como a Mata Atlântica, por exemplo.
O primeiro capítulo, ainda, narra a criação da primeira faculdade de medicina no Brasil, a Faculdade de Medicina da Bahia, em 1808, e evidencia, especificamente, a cidade de Campinas como um município conhecido pela luta contra as epidemias, fundamental no vínculo posterior entre a cidade e a criação do SUS. Além disso, o fim do século XIX e o início do século XX são destacados pela atuação de médicos sanitaristas importantíssimos, como Oswaldo Cruz, Vital Brazil, Adolfo Lutz e Emílio Ribas. Nesse período, são criados institutos soroterápicos, como o Butantan e o Manguinhos, futura Fundação Oswaldo Cruz, essenciais no combate às epidemias que assolavam o país.
Os próximos capítulos de A epopeia do SUS exploram os acontecimentos relacionados à questão sanitária no Brasil, durante o século XX, com destaque para as conferências realizadas em âmbito internacional e a criação da Organização Mundial da Saúde, em 1946. Em âmbito brasileiro, foram criadas iniciativas como a Liga Pró-Saneamento do Brasil, as Caixas de Aposentadoria e Pensões e, posteriormente, os Institutos de Aposentadorias e Pensões e o Ministério da Saúde, em 1953. O terceiro capítulo destaca a importância da 3ª Conferência Nacional da Saúde, que, em dezembro de 1963, esboçou a estrutura de municipalidade que seria a base do Sistema Único de Saúde.
O Golpe de 1964, entretanto, que instaurou o regime militar, desarticulou as intenções sanitárias do governo de João Goulart e transferiu as discussões acerca de uma nova forma de prática da medicina para dentro das universidades. Nesse contexto, destaca-se a atuação das faculdades de medicina de todo o país, em um movimento conhecido como Reforma Sanitária, empenhadas em iniciativas comunitárias e no desenvolvimento da saúde pública em suas regiões, com destaque para a Unicamp e para o trabalho de Zeferino Vaz.
Ainda, na década de 1970, nasce a “primeira proposta intelectual sistemática, e de esquerda, de um sistema universal de saúde”, representada pelo documento “A questão democrática na área da saúde”, assinado por Hésio Cordeiro, José Luís Fiori e Reinaldo Guimarães. É lançada a ideia que seria a base para a criação do Sistema Único de Saúde.
O quinto capítulo de A epopeia do SUS trata de algumas experiências locais de municípios pioneiros na instalação da saúde comunitária: Campinas (SP), Londrina (PR), Niterói (RJ) e Montes Claros (MG). Foram as primeiras tentativas de municipalização da saúde pública, com grande envolvimento das faculdades de medicina locais. Já os capítulos sexto e sétimo relatam duas conferências essenciais no desenvolvimento das ideias que baseiam o funcionamento do SUS, respectivamente: a Conferência Internacional de Cuidados Primários em Saúde, realizada em setembro de 1978, em Alma-Ata, capital do Cazaquistão, e a 8ª Conferência Nacional de Saúde, feita em março de 1986. Também são destacados importantes órgãos e associações criados durante o fim da ditadura com o objetivo de estender o direito à saúde a todos os brasileiros, como o Conass (Conselho Nacional dos Secretários de Saúde).
Enfim, em 1887, a proposta de criação do Sistema Único de Saúde foi encaminhada à Assembleia Nacional Constituinte. O livro A epopeia do SUS: uma conquista civilizatória trata do processo de oficialização no oitavo capítulo, em que são descritas as discussões que tiveram como palco a Subcomissão de Saúde, Seguridade e Meio Ambiente, da Comissão da Ordem Social. Os protagonistas desse momento histórico foram importantes personagens do processo de criação do SUS, como Nelson Rodrigues dos Santos, professor da Faculdade de Medicina da Unicamp.
Antes da implementação efetiva do SUS, entretanto, o Suds (Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde) teve protagonismo na implantação das bases para uma nova forma de praticar a saúde pública. Esse é o tema do capítulo nono do livro, que explica como se deu a atuação do Suds nos estados brasileiros e a municipalização que começou a tomar forma durante esse período.
A epopeia do SUS, além de tratar dos trâmites legais do processo de institucionalização, que foram finalizados apenas em 2011, ainda descreve duas movimentações que se deram em paralelo ao movimento de reforma sanitária. A luta por uma nova prática de coleta e transfusão de sangue e o movimento de reforma antimanicomial, temas do penúltimo capítulo da obra.
Nesse contexto, a criação do Hemocentro da Unicamp e a atuação das universidades públicas do estado de São Paulo foram importantíssimas no estabelecimento de novos parâmetros e políticas concernentes ao sangue, processo essencial na luta contra a pandemia de aids que estava em seu auge. Já o movimento pela reforma psiquiátrica tem profunda relação com a luta contra a ditadura, e o texto destaca Campinas, novamente, como pioneira nas ações de desinstitucionalização. Esse reconhecimento foi dado pela própria OMS, no Guia sobre serviços comunitários de saúde mental: promovendo abordagens centradas na pessoa e baseadas em direitos, que destaca como a abordagem da rede de saúde mental do município “reflete o indivíduo, a família e a comunidade”.
Por fim, o último capítulo de A epopeia do SUS, “Conquistas e desafios do SUS”, destaca o desempenho do sistema nos 35 anos após a sua criação: os indicadores em saúde, como a taxa de mortalidade infantil e o número de enfermeiros por habitante; a ampliação do Programa Nacional de Imunização (PNI); a criação do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência, o Samu. Além disso, esse capítulo ainda destaca como o subfinanciamento constitui-se como um problema crônico do sistema e destaca a análise de Nelson Rodrigues dos Santos acerca dessa questão. Finalmente, são descritos os impactos causados pela pandemia de covid-19 na impressão da sociedade acerca do SUS e de suas contribuições para o enfrentamento dessa catástrofe.
A epopeia do SUS: uma conquista civilizatória é, portanto, um incrível relato das várias décadas de luta e do sonho por uma saúde pública focada no bem-estar de todos os brasileiros, sem distinção. É também uma homenagem aos que fizeram parte, das mais diferentes formas, dessa história e que são o motivo pelo qual o Brasil possui uma saúde pública que, apesar de seus desafios, oferece qualidade de vida de forma gratuita e igualitária. Mais que isso, para os autores, o SUS é uma ideia: “Se a democracia social ainda não foi efetivamente alcançada, e se a democracia política continua de certo modo sob ameaça, como demonstraram os eventos pós-eleições presidenciais de 2022, o SUS é a comprovação do poder de resolução de políticas públicas idealizadas e executadas sob o prisma da equidade”.
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A epopeia do SUS: uma conquista civilizatória
Autores: Carmino Antonio de Souza, Lenir Santos, José Enio Servilha Duarte, José Pedro Soares Martins
ISBN: 9788526816282
Edição: 1ª
Ano: 2024
Páginas: 240
Dimensões: 14 x 21 cm