Quase humanos e automatismo em situações que se assemelham a religião

Por Ana Carolina Pereira

Arthur Bispo do Rosario nasceu em 1909. Negro, pobre, internado em um manicômio: tinha em si inúmeras marcas da marginalização social da sociedade brasileira e hoje é reconhecido como um artista genial. Ele, porém, não se considerava artista, mas sim que tudo o que fazia era uma missão divina e que seu trabalho era mais automático do que criativo. Semelhante ao Bispo do Rosario, a sueca Hilma af Klint fazia pinturas seguindo seus guias espirituais sem entender o que sua arte deveria representar. Essas duas personalidades, uma do Brasil e outra da Europa, têm em comum a automaticidade envolvida em suas ações, e elas não são as únicas que ficaram famosas por isso.

Pensando em pessoas como Bispo do Rosario e Hilma af Klint, Paul Christopher Johnson escreveu o livro Religião automática – Agentes quase humanos no Brasil e na França, publicado agora em português pela Editora da Unicamp com tradução de Bhuvi Libanio. Johnson é Ph.D. pela Universidade de Chicago e atua como professor na Universidade de Michigan. Suas pesquisas são desenvolvidas na área de antropologia e história das religiões no Brasil e no Caribe. A obra original foi publicada em dezembro de 2020 e seus capítulos foram apresentados em diversos locais pelo autor, como na École des Hautes Études, em Paris, no Departamento de Antropologia da Universidade Federal da Bahia e no Programa de Doutorado em Antropologia e História, na Universidade do Michigan. 

O livro é composto por Introdução, cinco capítulos, Conclusão, Bibliografia – com arquivos consultados, fontes de arquivos e obras publicadas – e Índice remissivo. O autor começa a obra dizendo que “este livro, assim como todos os livros, é uma encruzilhada e uma confluência e até mesmo, às vezes, um coro”. As primeiras vozes apresentadas são de Bispo do Rosario e Hilma af Klint, as quais são usadas para introduzir a ideia de automatismo e de que “a produção da encenação da ambiguidade do agente” e “a habilidade de representar um eu duradouro com uma identidade individual também duradoura” são habilidades conflituosas, mas que estão relacionadas. Nesse sentido, o autor pontua que “automático” e “agência” são os dois termos que delimitam o estudo que originou a obra, o qual “reflete sobre uma série de pessoas e coisas quase humanas assinaladas como autômatos desprovidos de vontade que, ainda assim, tornaram-se agentes”. 

Religião automática discute pessoas que tomaram o próprio automatismo como meio de reformulação da realidade na qual estavam inseridas, tornando-se agentes mesmo sendo consideradas quase humanas. Também é abordada a relação oposta entre religião e livre-arbítrio, e como religiosos são “agentes híbridos compostos por um eu e por outros meta-humanos”. Essa discussão contempla a conexão entre as ações agentivas e as ações automáticas em situações quase religiosas e abre portas para o debate sobre como certos grupos são considerados menos humanos e capazes de agir apenas automaticamente; a análise é complementada com uma reflexão sobre pessoas escravizadas no Brasil e pacientes psiquiátricos na França e no Brasil que eram denominados “autômatos”. Nesse contexto, para que a análise do livro flua, o autor traz, na Introdução, explicações sobre termos muito relevantes para a obra, como “agência ambígua”, “automático”, “autômato”, “religião automática”, “quase humano”, “incômodo”, “livre-arbítrio” etc.

“Os capítulos deste livro exploram objetos que atraem seus observadores, em parte devido a um interior secreto, desconhecido. Estão incluídos as visões de um paciente psiquiátrico, uma fotografia que parece ter poderes próprios, um desenho que se torna santo, um autômato empoleirado em cima de um armário fechado com uma porta aparente, um espírito escritor que descreve seu corpo como mero invólucro, um mecanismo e um veículo de transmissão para os mortos, e um desenho que, de alguma maneira, surge e então toma os traços do defunto colocado próximo a ele.”

Ainda na Introdução, Johnson apresenta um breve resumo do que será discutido em cada um dos capítulos da obra. O primeiro capítulo aborda quase humanos animais, como macacos, quase humanos na forma de pacientes psiquiátricos e pessoas escravizadas – figuras unidas em um só quadro sob a categoria de automatismo –, e “modos de ação quase humanos, como possessão espiritual, sonambulismo e hipnotismo”. O autor busca, ainda, mostrar a entrada da psiquiatria francesa no Brasil no final do século XIX e como ela afetou a sociedade. O segundo capítulo apresenta a fotografia de um pai de santo exorcista afro-brasileiro do século XIX com o objetivo de “mostrar a fotografia e a possessão espírita como artes que se cruzam e que frequentemente são simbióticas, tornando visível o que antes era invisível”. O terceiro capítulo discute a Santa Escrava Anastácia, uma santa brasileira não oficial. Ao debater sobre essa santa e sobre seus contextos e temperamentos, o autor procura proporcionar “uma textura e complexidade histórica à noção de agência automática”. O quarto capítulo discorre sobre “a atração da quase humanidade em forma de máquinas quase humanas” a partir da história de um homem-máquina específico. O quinto capítulo, por fim, aborda o uso de testemunhos espirituais em questões jurídicas, levantando dois principais questionamentos: “o que acontece quando esses dois sistemas colidem em espaços públicos como os tribunais? Que conflitos surgem quando uma ação automática aparece em locais onde a instituição exige ação agentiva e um indivíduo responsável?”.

Religião automática apresenta linguagem e termos técnicos, discutindo conceitos importantes para os estudos em antropologia. A obra não segue uma cronologia estrita; em vez disso, questões diferentes são reveladas a cada capítulo. Epígrafes de Machado de Assis estão presentes em cada capítulo, e o motivo disso, segundo Johnson, é o fato de os temas da escrita de Machado, como escravidão, psiquiatria, alienismo, autômatos, animais falantes e religião, serem muito caros ao livro. Discutindo essas questões, o título pode fomentar debates sobre o passado brasileiro – principalmente sobre pessoas escravizadas –, mas também sobre o presente e como certos grupos ainda são considerados quase humanos. Nesse sentido, a obra pode interessar também a estudiosos da área de ciências sociais.

Para saber mais sobre o livro, visite o nosso site!

Religião automática – Agentes quase humanos no Brasil e na França

Autor: Paul Christopher Johnson

Tradução de: Bhuvi Libanio

ISBN: 978-85-268-1600-8

Edição: 1a

Ano: 2023

Páginas: 336

Dimensões: 16 x 23 cm

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