Por Luiza Melo
Podemos dizer que a química é uma área de muitas faces, com inúmeras ramificações que vão das profundezas da terra até o espaço e interessa tanto à agricultura, à indústria fina e à indústria pesada quanto à farmacologia. Trata-se de uma ciência que atravessa fronteiras, passa pelo inanimado e o vivo e fica entre o microscópico e o macroscópico; é um campo do conhecimento, herdeiro de um contexto em que a multiplicidade ultrapassa qualquer definição. Nesse sentido, há um grande desafio voltado à construção de sua identidade, desafio esse que foi abraçado pelas filósofas e historiadoras Bernadette Bensaude-Vincent e Isabelle Stengers no livro História da química (Histoire de la chimie, 1993). Nele, as autoras apresentam de forma enriquecedora o panorama histórico da química.
Ao longo de três décadas, o livro História da química se tornou um dos mais difundidos sobre o assunto, tendo sido traduzido para quatro idiomas: inglês, espanhol, grego e português (edição portuguesa do ano de 1996). A nova versão, publicada agora pela Editora da Unicamp, foi traduzida a partir de um processo de comparação das fontes primárias e secundárias, em conjunto com traduções já disponíveis em outras línguas, objetivando, com isso, uma maior fidelidade às intenções dos escritos originais das autoras.
A obra tem como fio condutor a busca pela identidade da química e pretende narrar uma história inovadora em relação aos livros similares da área. Desse modo, as autoras, ambas referências na área, utilizam os métodos usados pelos filósofos para desvendar os mecanismos nos quais a identidade da química foi construída em cada período histórico, contando como ocorreu a luta dessa disciplina por seu espaço ao longo dos séculos.
O livro procura apresentar uma história da química global e panorâmica, que não apenas expõe um desfile de sequências de doutrinas, tampouco um acúmulo de anedotas que se interessam apenas pelas histórias dos indivíduos. Nele, a química é colocada como a verdadeira protagonista da história, por meio do incessante comprometimento humano com o conhecimento produzido e com as significações atribuídas a tal conhecimento. A obra percorre a trajetória de uma ciência polimorfa e policultural, sem fronteiras assinaláveis no mundo nem na cultura, que com o decorrer do tempo se vê revestida de ciência que ocupa seu próprio espaço, com entrada na filosofia natural, após as artes químicas terem sido racionalizadas. Finalmente, torna-se uma prestigiada ciência, modelo de positivismo, que dá base a vários setores industriais – uma ciência de serviço, subjugada à física, em proveito da biologia, bem como das indústrias.
História da química é dividida em cinco partes, sendo elas subdivididas em capítulos. A primeira parte, nomeada “Das origens”, trata do período do legado de Alexandria até o atomismo de Boyle, procurando esclarecer o problema das origens. Já a segunda parte, “A conquista de um território – de Isaac Newton até o triunfo de Lavoisier”, abrange todo o século XVIII, revelando uma química conquistadora na busca pela legitimidade como ciência. A terceira parte é chamada “Uma ciência de professores” e aborda desde o período em que a química começa a ser vista como uma profissão respeitada até a construção de moléculas de Berthelot, tendo como foco a face acadêmica e profissional da química do século XIX. Em “A expansão industrial”, as autoras abordam a química de Leblanc e Solvay até a corrida pelos materiais e apresentam o perfil da química no mundo da produção e do trabalho. Na parte final, intitulada “Desmembramento de um território”, temos a química num território gradualmente desmembrado em múltiplas subdisciplinas, mais ou menos híbridas ou autônomas.
Segundo as autoras, disciplinas como química e física não existiram desde sempre; pelo contrário, foram concebidas pouco a pouco, já que não havia um espaço para a ciência química nos programas escolares antigos. Tudo se iniciou com os alquimistas e, ao mesmo tempo, com metalúrgicos, místicos, céticos e racionalistas. Foi somente em meados do século XVIII que a química conseguiu um lugar nas academias e nas universidades, fomentando o interesse do público culto, como físicos e médicos. Esses acadêmicos disseminavam o conhecimento através de experimentos públicos, e depois deram lugar a professores de química, químicos empreendedores, inventores e engenheiros. Só no século XIX a química começou a ser vista como uma ciência de ponta, “a própria imagem do progresso”. Mas qual foi o percurso da química até a conquista de seu direito à cidadania? Como a área foi reconhecida como ciência? Essas e outras questões são abordadas na obra.
De acordo com Bernadette e Isabelle, a química se tornou uma ciência quando se libertou dos conhecimentos tidos como arcaicos, inúteis e dos saberes ocultos. Esse rompimento com o passado marcou a origem de sua história, dividida em “era pré-científica” e “era científica”. Na prática, essa fragmentação trouxe grandes vantagens ao narrador da história da química, pois deu livre acesso a textos exuberantes, como o de Ferdinand Hœfer que conduziu os leitores por um passeio através de universos intensamente contrastantes. Hœfer percorreu pioneiramente caminhos tidos como fáceis de práticas mais ou menos mágicas, carregadas de símbolos herméticos de culturas exóticas, e alcançou o progresso ao elaborar leis baseadas em suas descobertas experimentais, que geraram naturalmente uma série de aplicações industriais ou agrícolas, cada qual mais benéfica que a outra para o progresso da humanidade.
O exemplo apresentado acima pode parecer um pouco envelhecido ou datado, mas nele é possível vislumbrar vestígios de um período em que os próprios químicos escreviam a sua história. Tanto que, no século XIX, não era atípico um químico, depois de realizar um avanço em seus trabalhos e em suas pesquisas, se tornar um historiador ou até um erudito, com o intuito de afirmar a identidade de sua disciplina e projetar a sua imagem aos olhos do público. Nesse sentido, a obra pretende despertar o interesse não só de estudantes e professores de química, física e farmácia, mas também daqueles das áreas de engenharia, economia, história e filosofia, que querem conhecer a história da química de forma aprofundada.
Para saber mais sobre o livro, visite o nosso site!
Caso queira ler mais sobre o assunto, a Editora da Unicamp possui outros títulos em seu catálogo: Como se faz química – uma reflexão sobre a química e a atividade do químico, de Aécio Pereira Chagas, e Conceitos fundamentais de termodinâmica e cinética para reações químicas, de Adalberto B. M. S. Bassi.

Autoras: Bernadette Bensaude-Vincent e Isabelle Stengers
ISBN: 978-85-268-1601-5
Edição: 1a
Ano: 2023
Páginas: 360
Dimensões:16 x 23