A atuação dos etnólogos alemães na preservação dos povos originários das Américas

Por Gabriel de Lima

Desde os primórdios da colonização europeia nas Américas, houve a implementação de políticas e práticas genocidas, que dizimaram e marginalizaram os povos originários em todo o território americano. Migrando para o interior do continente, essas comunidades foram subjugadas a um processo de exclusão social que perdura até a contemporaneidade. Com isso, grupos de intelectuais não somente brasileiros, mas também estrangeiros perceberam a necessidade de reestabelecer o contato com esses indivíduos postos à margem da sociedade, documentando as suas culturas, os seus ritos sociais, as suas línguas, entre outros aspectos étnicos que, ao não serem registrados, corriam o risco de desaparecer silenciosamente.

Nesse contexto, inserem-se os etnólogos alemães que promoveram expedições em solo brasileiro, sobretudo na região amazônica, durante os séculos XIX e XX, instituindo uma rede de conexões entre si próprios e, ademais, com as comunidades reclusas socialmente. Uma relação que não deixou de ser influenciada pelos fatores históricos sucedidos ao longo desse período – como, por exemplo, as duas Guerras Mundiais e a decadência cultural e intelectual na Alemanha com a predominância dos ideais nazistas. Partindo dessas considerações, o professor e pesquisador brasileiro Erik Petschelies publica pela Editora da Unicamp a obra Ascensão e declínio da etnologia alemã (1884-1950), que analisa “as origens, o desenvolvimento, o ápice e a lenta derrocada de uma disciplina científica praticada por intelectuais alemães nascidos ao longo do século XIX”.

Segundo o autor, o estudo partiu da necessidade de textos teóricos e documentais que recuperem a contribuição dos americanistas germânicos para a etnologia e a antropologia desenvolvidas no Brasil, que eram e continuam a ser marcadas pela tradição inglesa, francesa e norte-americana. Iniciando-se com “a primeira expedição de Karl von den Steinen de 1884 (ainda valiosa evidência de povoamento indígena)”, o recorte temporal e espacial feito por Petschelies pretende apresentar, para além da trajetória dos cientistas alemães, a pesquisa e os materiais por eles produzidos e que foram, até um passado recente, “incorretamente associados ao difusionismo” – corrente de pensamento essa que consiste em associar o desenvolvimento cultural a um processo histórico de difusão entre os povos. A obra estende-se até o ano de 1950, com os primeiros indícios dos efeitos do pós-guerra e o falecimento de Max Schmidt, importante nome nos estudos das comunidades indígenas sul-americanas.

“A narrativa de Petschelies restitui os percalços, os fracassos, o cotidiano dessas viagens”, demonstrando o pioneirismo metodológico dos etnólogos germânicos que, geralmente, prezavam por uma documentação sem uma perspectiva teórica preestabelecida, pois eles pretendiam registrar da forma mais fiel possível os dados etnográficos que eram obtidos em suas andanças no interior brasileiro. Em uma via de mão dupla, o autor de Ascensão e declínio da etnologia alemã (1884-1950) também enuncia a contribuição teórica e, sobretudo, acadêmica desse grupo de intelectuais na “constituição da etnologia no Brasil”, algo que foi pouco compreendido e reconhecido pelas gerações de pensadores nacionais no pós-guerra.

Partindo para a elaboração da presente obra, para qual “foram consultados três diários de campo e uma centena de fotografias, além de lidas mais de 8 mil correspondências”, Petschelies incluiu imagens e mapas – listados no começo do volume – que pretendem auxiliar o público leitor na compreensão dos assuntos abordados ao longo do estudo. Para além disso, a obra conta com um Prefácio assinado por Mauro de Almeida, Ph.D. em Antropologia Social pela Universidade de Cambridge, que apresenta de forma compartimentada os tópicos centrais percorridos pelo autor, como “Etnografia como Literatura e a Experiência de Campo” e “Etnografia e Política”.

O livro é produto decorrente da tese de doutorado defendida por Erik Petschelies, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp), que recebeu apoio de diversos colegas do Instituto – por exemplo, John Monteiro, que era considerado um dos maiores especialistas em história indígena – e de pesquisadores de outras universidades brasileiras e estrangeiras, dado a estadia de Petschelies como pesquisador-visitante na Philipps-Universität Marburg, na Alemanha. Dessa forma, essa estadia em terras germânicas possibilitou que o pesquisador brasileiro entendesse como “os etnólogos alemães intencionavam transmitir ao leitor a experiência vivida”, passando a promover uma metodologia inovadora dentro dos estudos etnográficos.

Apesar da perspectiva revolucionária, Petschelies destaca que “o rescaldo dessas guerras [mundiais] foi o declínio irreversível da língua alemã como principal língua da cultura e da inovação artística e científica, em proveito da língua inglesa”. Posto isso, a presente obra busca recuperar, aliada a um crescente interesse dos intelectuais brasileiros, a pesquisa desenvolvida pelos americanistas alemães Karl von den Steinen, Paul Ehrenreich, Herrmann Meyer, Max Schmidt e Theodor Koch-Grünberg. Atravessando o interior amazônico, esse grupo garantiu, por meio de sua iniciativa acadêmica pioneira, a preservação cultural e étnica dos povos originários que vivem nas Américas, desde antes da colonização europeia.

De acordo com Mauro de Almeida, o “livro de Erik Petschelies […] tem potencial de explodir a historiografia da antropologia americanista hegemônica” por reapresentar ao público brasileiro a trajetória desses pesquisadores germânicos, que pode ser definida justamente pelo título da obra: Ascensão e declínio da etnologia alemã (1884-1950). O estudo expõe também a rede de relações que se tinham entre eles, mostrando como havia o compartilhamento de ideias e experiências advindas de suas andanças. Sendo assim, ao transitar entre o Velho e o Novo Mundo, Petschelies joga luz sobre um momento singular na relação de europeus e ameríndios.

Para saber mais sobre o livro, visite o nosso site!

Comentário feito por Lilia Moritz Schwarcz, professora sênior do departamento de antropologia da USP:

O livro de Erik Petschelies explora de maneira exemplar e completa os rumos da etnologia na Alemanha, em sua contraface com a construção de um americanismo germânico, na segunda metade do Oitocentos, até o desmonte do projeto após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Dentre a primeira e a segunda geração desses verdadeiros filósofos viajantes, a América – e em especial os povos indígenas das terras baixas – se apresenta como campo fundamental para o estabelecimento das distinções entre natureza e cultura e para a formação de coleções, dispostas sobretudo nos museus e palacetes em Berlim.

Com rara erudição e grande sensibilidade, Erik acompanha 6 etnólogos e 15 expedições, identifica-se com os percalços e subjetividades deles em seus campos, refaz suas trajetórias e biografias, recupera bases filosóficas, analisa suas produções, investe na compreensão de seus contextos científicos, sem perder jamais a crítica e a necessária distância diante desse complexo processo de uma escola de antropologia em formação.

O resultado é um verdadeiro mapa dessa produção intelectual, um trabalho que já nasce como um clássico para a história do pensamento alemão e da antropologia de uma maneira geral.

Ascensão e declínio da etnologia alemã (1884-1950)

Autora: Erik Petschelies

ISBN: 9788526815926

Edição: 1a

Ano: 2022

Páginas: 624

Dimensões: 16 x 23 cm

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