Por Ana Carolina Pereira
Atualmente, o Alzheimer atinge 11,5% da população acima de 65 anos no Brasil e é a causa mais comum de demência no mundo. Trata-se de uma doença neurodegenerativa, caracterizada pela perda progressiva de neurônios, ou seja, quanto mais ela progride, mais áreas do encéfalo são afetadas. Há tratamento para os seus sintomas, mas ainda não existe cura; assim, a terapêutica não impede a progressão do Alzheimer. Embora os sintomas tendam a aparecer por volta de 60 anos de idade, há uma forma rara da doença, chamada Alzheimer precoce, que aparece em pessoas mais jovens, a partir dos 40 anos. Essa forma da enfermidade está relacionada a mutações genéticas.
Após pesquisar a doença de Alzheimer e ver no esquecimento e na memória um caminho para a arte, quatro atores produziram a peça Kintsugi, 100 memórias. Para eternizar o processo de pesquisa, criação e encenação do espetáculo, três dos quatro atores – Ana Cristina Colla, Raquel Scotti Hirson e Renato Ferracini – escreveram o livro Entre cenas, memórias e estilhaços, publicado pela Editora da Unicamp. Os autores trabalham juntos, desde 1994, no Lume – Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da Unicamp. Além deles, um quarto ator, Jesser de Souza, participou do processo criativo e da apresentação da peça.
A obra é parte de um processo iniciado em 2012, quando os atores tiveram a primeira faísca da ideia que originaria a peça, que foi apresentada pela primeira vez em 2019. Segundo Colla, Hirson e Ferracini, o título “é um instrumento para organizar a memória coletiva de tudo que transcorreu e, ainda, o próprio inventário das materialidades transcorridas, sonoras, imagéticas ou concretas e tridimensionais”, e também é literatura, “porque traz o testemunho idiossincrático e intransferível de três dos seus criadores”. Além do livro e do espetáculo, também foram produzidos um programa radiofônico, uma peça de arte sonora e um documentário. Entre cenas, memórias e estilhaços é composto por três capítulos, além do prefácio, da apresentação, da conclusão e da bibliografia. Cada um dos autores apresenta sua própria perspectiva sem assinar diretamente suas contribuições, para “enfatizar uma autoria ampliada”.
“Eu me lembro de nós quatro (Renato, Raquel, Jesser e Cris) sentados na sala branca do Lume, abrindo desejos e firmando estratégias para sonhar juntos nosso próximo espetáculo coletivo, tendo a memória, mais especificamente o esquecimento gerado pela doença de Alzheimer, como deflagrador do processo criativo. A revista Superinteressante aberta sobre a mesa e as imagens de Angostura e do dr. Lopera, o povoado com o maior número de Alzheimer precoce e hereditário do mundo e o médico que há anos ambiciona domar a enfermidade, saltando das páginas.”
O povoado de Angostura, que inspirou a produção do espetáculo, fica na Colômbia e, em 2012, mais de 12% de sua população de 12 mil habitantes tinha uma mutação genética relacionada ao Alzheimer precoce. A região foi alvo de diversas pesquisas ao longo dos anos, incluindo a dos atores de Kintsugi, 100 memórias. Eles estudaram tanto a doença de Alzheimer quanto Angostura, realizando, inclusive, entrevistas com moradores do povoado para embasar a construção da peça. Inicialmente, a pesquisa de campo propunha seguir “a trajetória de pessoas diagnosticadas com a doença de Alzheimer”, mas, durante a investigação, o Lume se voltou para si mesmo para “abordar as operações da memória, do esquecimento e, claro, do trauma a fim de elaborar uma poética e, sobretudo, uma clínica de sua própria história e trajetória artística”. Foi partindo da doença de Alzheimer que Renato, Raquel, Jesser e Cris criaram o espetáculo, comportando ideias coletivas e individuais e usando a metáfora do Kintsugi para isso.
Kintsugi é uma técnica japonesa de restauração de cerâmicas e porcelanas, em que se utiliza cola misturada com pó de ouro. O objeto quebrado, ao ser restaurado, ganha detalhes dourados, evidenciando as partes remendadas ao invés de escondê-las. Essa técnica tem caráter filosófico e é vista como um modo de aceitar as imperfeições de algo. É usando essa metáfora que o espetáculo Kintsugi, 100 memórias se constrói, por meio de um “mergulho nas memórias de 30 anos de convivência dos quatro protagonistas”, entrelaçando memórias particulares e coletivas ao longo da peça. Como coloca Luiz Fernando Ramos no prefácio da obra, no espetáculo, “o pacto criativo, como os vasos do Kintsugi, assume-se como desvendamento e superação de uma crise, ainda que não esteja em questão a veracidade dos fatos narrados”.
O livro Entre cenas, memórias e estilhaços apresenta para o leitor o processo de criação da peça com auxílio, além dos textos, de imagens, fotos e poemas. A narrativa por vezes é mais poética e por vezes é mais técnica; “ela também transita, quando se faz necessário para o aprofundamento de temas e conceitos específicos, por terrenos densos”. Entre cenas, memórias e estilhaços comporta a potência do Lume Teatro e de seus atores, que transformaram em arte um tema sensível como o Alzheimer. Nesse sentido, a obra interessa não somente aos amantes da arte do teatro – principalmente àqueles curiosos a respeito dos processos criativos por trás de uma peça –, mas também a pesquisadores da área, já que traz conceitos e discussões fundamentais sobre o teatro como objeto de pesquisa.
Para saber mais sobre o livro, visite o nosso site!

Entre cenas, memórias e estilhaços
Autores: Ana Cristina Colla, Raquel Scotti Hirson e Renato Ferracini
ISBN: 978-85-268-1580-3
Edição: 1a
Ano: 2022
Páginas: 232
Dimensões: 16 x 23 cm