Os mistérios da arte cênica

Por Gabrielle da Silva Teixeira

O Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da Unicamp, conhecido como Lume Teatro, começou a partir de um experimento de Luís Otávio Burnier e Carlos Roberto Simioni, em 1985. Reconhecido pela Unicamp em 1986, o núcleo é destinado ao aprofundamento da arte da atuação e promove a pesquisa cênica, ganhando reconhecimento internacional por seus trabalhos no campo do teatro e do circo, e conta com a colaboração de atores-pesquisadores que ampliam essa área do conhecimento. Na obra Práticas teatrais: Sobre presenças, treinamentos, dramaturgias e processos, os atores-pesquisadores Renato Ferracini, Ana Cristina Colla e Raquel Scotti Hirson apresentam como o núcleo se encontra atualmente e expõem todo o processo de pesquisa sobre a presença do artista cênico, sua relação com o público e a construção e criação de um personagem.

Renato Ferracini, Ana Cristina Colla e Raquel Scotti Hirson são doutores em Artes Cênicas pela Unicamp e, atualmente, contribuem em oficinas, espetáculos, pesquisas e outras atividades oferecidas pelo Lume em diferentes cidades do Brasil e do exterior. Seus trabalhos seguem as linhas de trabalho do núcleo, como os treinamentos corpóreo e vocal cotidianos para o ator, o campo de codificação, a sistematização e a teatralização de técnicas corpóreas e vocais não-interpretativas. 

Em Práticas Teatrais, o leitor poderá conhecer as linhas de pesquisas desenvolvidas dentro do Lume, bem como a história do núcleo, marcada por uma das grandes dores: a morte do mestre Luís Otávio Burnier. Na carta que abre o livro, Bya Braga afirma que Burnier foi um homem com uma conduta visionária sobre as diretrizes de pesquisa artística. Além disso, o leitor compreenderá como os trabalhos do núcleo são constituídos e de que forma seu material contribui com o conhecimento cênico por meio de pesquisas, que não eram de fácil acesso anteriormente, e da realização de traduções e cursos com professores artistas externos. Tais meios “inovam o fazer cênico na prática artística, fazendo da atividade de pesquisa cênica performativa uma prática que colabora para o melhor entendimento do percurso do processo criativo, apresentando, também, elaborações conceituais e um léxico fundamentado no fazer artístico”, como Braga apresenta na carta.

Para entender quais são os tipos de pesquisas que o Lume realiza, Ferracini expõe e explica os três cenários em que elas são desenvolvidas. O primeiro é a investigação artística, que visa expandir o domínio da corporeidade, dos acontecimentos estéticos presenciais e os efeitos de presença de um ator, performer. As linhas de pesquisa desse cenário são: treinamento técnico e energético e de manutenção física; dança pessoal (baseia-se na dinamização e dilatação das energias potenciais do ator, atentando-se as nuanças que compõem o corpo e voz de cada profissional); mímesis corpórea (codifica as ações físicas do performer por meio da observação e recriação do outro presente em imagens, animais, espaços arquitetônicos etc.); o palhaço e o sentido cômico do corpo (relacionando com a figura histórica e social do palhaço, sua pedagogia e os processos criativos dos espetáculos); e teatralização e poetização de espaços não convencionais (colocando o ator em contato direto com o público, implodindo o espaço teatral limitado pelo palco italiano). 

Outro cenário é o da investigação conceitual, que tem uma abordagem transdisciplinar que envolve estudos políticos, sociais, históricos, da saúde, entre outros. As linhas de pesquisa, desenvolvidas em parceria com o Programa de Pós-Graduação do Instituto de Artes da Unicamp, abrangem as conceituações sobre o “corpo-em-arte” — como a questão de presença, pré-expressividade etc. —, a investigação teórica e prática dos processos de formação do artista da cena e a escrita performativa, cuja participação de dançarinos e atores para atender às questões geradas no conceito “corpo-em-arte” é fundamental.

O último cenário de pesquisa apresentado é o da investigação formativa, que visa sistematizar procedimentos de experiências artísticas, pensamentos conceituais baseados nas pesquisas para que possam ser trabalhados em cursos teóricos de pós-graduação. As linhas de pesquisa desse cenário são desenvolvidas por meio de políticas de patrocínio e apoio cultural federal, com a publicação de livros, projetos de fomento à pesquisa, extensão e consultorias. 

A obra também evidencia o conceito de treinamento de um ator, o qual Ferracini afirma que é baseado em uma “postura de repensar, descolar, problematizar e ampliar” a ideia desenvolvida por tal conceito. Assim, para trabalhar os possíveis caminhos de análise sobre o treinamento, o autor irá fazer três tipos de deslocamento: etimológico, ontológico e epistemológico.

No primeiro deslocamento (etimológico), Ferracini apresenta a definição e a origem da palavra treinamento, que apresenta um duplo e paradoxal território: treinar pode ser um aprendizado de habilidades, isto é, ser adestrado, como também ser uma intensificação do conhecimento que já temos. Assim, o autor afirma que esses pontos não seriam polos opostos, mas complementos que podem gerar um corpo criativo. No deslocamento ontológico, a análise é voltada para o “ser-corpo-do-ator”, seguindo os pensamentos do filósofo Espinosa. Ele afirma que o corpo é formado por um conjunto de partes, divididas em elementos extensivos e intensivos. A interação entre esses elementos é responsável por compor e recompor um corpo. Assim, Ferracini afirma que não é um corpo com uma demarcação fixa, mas um elemento dinâmico e em gerúndio. Por fim, no deslocamento epistemológico, o autor parte da prática de áskesis, criada por Foucault, que não só desloca o conhecimento de si para a experiência de si, enfatizando as práticas de cuidado que geram um conhecimento específico do/no/para o corpo, mas também faz com que o indivíduo adquira algo para ampliar a potência de afeto e não somente renunciar ou negar a si mesmo.

No livro, Ferracini faz uma analogia entre o conceito desenvolvido pelos filósofos Deleuze e Guattari, o ritornelo, e o ato de colocar seu filho para dormir. O ritornelo é entendido como a sensação ou o monumento artístico composto por três planos: direcional, dimensional e abertura para forças cósmicas. Levando esse conceito para o trabalho do ator, expõe-se que não é um território que delimita as expressões compostas pelo atuador, mas o oposto: o território é formado por cada expressão, não sendo replicados, mas sim abre a possibilidade de “experiências de criação de formas expressivas”. Ademais, o ritornelo nas práticas teatrais afirma que todo um território pode ser desmontado, podendo ir para outros caminhos, isto é, tem-se a abertura para o cosmos. 

Entretanto, o leitor descobrirá durante a leitura da obra que esse conceito de ritornelo, ao afirmar que a ação deve estar baseada apenas no território, não está de acordo com a concepção do Lume. Como afirma Ferracini, a arte cênica presencial deve não só estar presente no próprio conceito, como também deve ser exploratória, “atuando no passado por meio da pesquisa das formas de expressão possíveis para a geração de outro território e improvisando saídas futuras possíveis para a abertura do território ao caos criativo e à sua reterritorialização”. Assim, a reflexão sobre a presença cênica não se limita ao ator, ou  seja, é a construção e a composição na relação entre corpos envolvidos na potência e na intensidade do ato cênico. O artista deve construir e reconstruir suas ações com, e não para, o “público-espaço”, isto é, “construir uma presença coletiva a partir de uma proposta específica”. A análise em torno do conceito de presença cênica é relacionada com outros parâmetros conceituais de corpo, em que, na obra, será associado à definição de Espinosa (um corpo, portanto, se define por sua potência: sua capacidade de afetar e ser afetado) e também à vida, mas não como uma propriedade orgânica, e sim uma intensidade, uma força de composição, recriação, diferenciação e autocriação constante.

Por fim, Ana Cristina Colla expõe seu trabalho, evidenciando a presença feminina de muitas mulheres na composição de cada personagem, partindo de diferentes momentos de sua trajetória como atriz no Lume. Assim, o leitor encontrará também o processo de criação de um personagem e de mímesis corpórea. 

Práticas teatrais é desenvolvido por pesquisadores artistas, pessoas que vão além da arte da cena, deixando em si mesmos o desejo de questionar a própria atividade profissional. O livro é indicado para estudantes, atores, performadores e amantes da dramaturgia que buscam ir além no conhecimento das artes cênicas.

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Práticas teatrais: Sobre presenças, treinamentos, dramaturgias e processos

Organizadores: Renato Ferracini, Raquel Scotti Hirson e Ana Cristina Colla

ISBN: 9786586253559

Ano da Publicação: 2020

Edição: 1

Formato: 23,00 x 16,00 x 2,00 cm.

Nº Páginas: 360 pp

Peso: 400 g.

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