A trajetória do jogo do bicho na sociedade brasileira

Por Ana Carolina Pereira

O jogo do bicho foi criado pelo barão João Batista Viana Drummond em 1892, como um meio de aumentar a arrecadação financeira do jardim zoológico mantido por ele. Na origem do jogo, ao adquirir um ingresso, o visitante ganhava também uma figurinha de um dos 25 bichos da lista a serem sorteados. Quem tivesse a figura do bicho sorteado ganhava um prêmio em dinheiro. Esse jogo logo se estendeu para além do zoológico, por toda a cidade do Rio de Janeiro, e, depois, por diversas regiões do Brasil, existindo até hoje mesmo na ilegalidade.

Para estudar a trajetória dessa loteria desde sua criação até início do século XXI, Amy Chazkel escreveu o livro Leis da sorte – O jogo do bicho e a construção da vida pública urbana, publicado pela Editora da Unicamp. Chazkel é doutora em História pela Universidade de Yale e atua como professora associada no Departamento de História do Queens College, City University of New York e Cuny Graduate Center, além de ser co-coordenadora do corpo editorial da Radical History Review e estar na banca editorial da Law and History Review. Originalmente publicado em inglês com o título Laws of chance – Brazil’s clandestine lottery and the making of urban public life, ganhou prêmio de melhor livro pela Law and Society Association e pelo New England Council on Latin American Studies, e menção honrosa, na categoria de melhor obra sobre o Brasil, pela Associação de Estudos Brasileiros

Primeiramente, o título foi publicado em uma série chamada Radical Perspectives, organizada por Barbara Weinstein e Daniel J. Walkowitz. Como o próprio nome pontua, a série trouxe perspectivas radicais sobre diversos assuntos. Da mesma forma, Leis da sorte apresentou uma visão que destoava da típica e colocava o cerceamento dos espaços urbanos como um dos motivos que transformou os cidadãos em transgressores, ou seja, propiciou que a atividade do jogo do bicho continuasse existindo mesmo na ilegalidade. A obra é composta por seis capítulos mais Introdução e Epílogo, tendo como objetivo descrever a formação do relacionamento entre o jogo do bicho e o Estado. Nessa relação, segundo a autora, “a questão principal não é tanto se atividades ilegais estavam ocorrendo, e sim por que razão esse passatempo popular, esse jogo de azar, foi criminalizado”. 

Com a desculpa de proteger os bons costumes, a criminalização do jogo do bicho ancorava-se em uma área cinza que permitia às figuras de autoridade exercerem um poder arbitrário ou desfrutarem de certo grau de flexibilidade. Esse fenômeno de criminalização de práticas populares não ocorreu somente no Brasil, mas na América Latina toda e criou uma dinâmica cultural, jurídica e social da vida pública urbana desses lugares. Assim, Chazkel afirma: “coloco o jogo do bicho no contexto do mundo de práticas populares criminalizadas, mas ainda assim generalizadas, que são, elas próprias, uma marca da vida pública urbana e moderna por boa parte do globo”. Nesse sentido, o jogo do bicho assemelha-se a outras práticas de jogos de azar que apareceram pelo mundo na mesma época.

“O jogo começou a se espalhar pelo Rio de Janeiro, então capital do país, como uma prática difusa de legalidade questionável na década de 1890. Logo passou a ser uma característica importante da paisagem cultural da cidade, depois uma prática nacional e, no século XX, parte importante de uma verdadeira rede de crime organizado.”

O livro Leis da sorte traz casos de prisões por envolvimento com o jogo do bicho para discutir a relação entre essa prática popular urbana e o Estado, voltando-se “para a conexão entre práticas informais e a vida pública urbana moderna não como seu argumento concludente, mas como ponto de partida”. A autora aponta que, nos primeiros 35 anos do jogo, cerca de 4% dos casos jurídicos terminavam em condenação, pois a falta de provas incriminatórias ou o fato de a Polícia ter agido de forma arbitrária faziam com que os juízes absolvessem a maioria dos réus. Esse ponto levanta uma questão muito importante colocada por Chazkel: “o Estado administrava suas próprias loterias; por que, então, não regulamentar e taxar o jogo do bicho?”. 

A intervenção da lei gerou impactos nessa atividade, desde sua estrutura até suas funções sociais e sua significância política. Assim, com o objetivo de reconhecer o conflito social que o jogo do bicho gerou, o livro analisa os motivos para o Estado não ter regulamentado esse jogo de azar. Ademais, a partir da análise do primeiro século de existência do jogo, a autora levanta três importantes questões que serão discutidas no livro: o cerceamento das terras comuns; o setor informal; e “a repressão legal das classes populares que acompanhou a modernidade urbana em todas as áreas da América Latina”. Seguindo a história dessa loteria, Chazkel pontua que 1946 é reconhecido como o começo da verdadeira criminalização desse jogo, e isso terá seus motivos e nuances discutidos no livro.

Com o auxílio de fotos e casos criminais reais, na obra, a autora procura discutir não apenas os motivos de essa loteria ser criminalizada, mas também os processos de formação de uma sociedade que foi moldada pelo capitalismo e transformada pela modernidade com o passar do tempo. Não apenas o início da loteria é discutido, mas também sua existência na Era Vargas, na ditadura militar e no início do século XXI, com informações mais recentes. A leitura dessa obra faz-se fundamental para compreender um aspecto essencial da sociedade brasileira ao se discutir um jogo que, mesmo ilegal, existe ainda hoje em diversas cidades do Brasil.

Para saber mais sobre o livro, visite o nosso site!

Leis da sorte – O jogo do bicho e a construção da vida pública urbana

Autora: Amy Chazkel

ISBN: 978-85-268-1085-3

Edição: 1a

Ano: 2014

Páginas: 360

Dimensões: 16 x 23 cm

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